Como Facebook e Amazon contam com uma força de trabalho invisível

Terceirizados começaram a protestar contra suas péssimas condições de trabalho, mas é uma batalha difícil

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Bloomberg Opinion — Você não os vê, mas eles estão lá: centenas de milhares de pessoas sentadas em computadores por horas a fio para manter os serviços on-line funcionando perfeitamente. Pode parecer que a internet funciona de forma totalmente automática, mas não é bem assim. Humanos geralmente ficam escondidos nos bastidores, trabalhando em tempo real para verificar sua identidade, sinalizar discursos de ódio ou legendar vídeos.

O mercado de tarefas digitais sob demanda é estimado em US$ 25 bilhões pelo Banco Mundial, e alguns dos maiores compradores desses serviços são a Meta Platforms, do Facebook (FB), a Amazon (AMZN), e o YouTube, da Alphabet (GOOGL). Ao longo dos anos, elas reuniram diversos trabalhadores digitais globais sob demanda que mantiveram em bases puramente comerciais. É aí que está o problema.

Em vez de contratar esses trabalhadores diretamente, as empresas os coordenam por meio de agências de terceirização, como a Accenture (ACN) ou a Cognizant Technology Solutions (CTSH), que, por sua vez, contratam de outras agências, em um amplo e intrincado show de marionetes. O trabalho normalmente é confidencial, a jornada de trabalho é instável, e o salário é baixo.

Em contraste com os engenheiros de alto salário e especialistas em políticas das grandes empresas de tecnologia que desfrutam de buffets e aulas gratuitas de karatê, os terceirizados são a mão de obra barata na base da pirâmide. Há um termo para o que eles fazem – “Ghost Work” (ou “trabalho fantasma”, em tradução livre), termo cunhado pelos pesquisadores da Microsoft (MSFT) Mary L. Gray e Siddharth Suri, que o transformaram no título de um livro de 2019.

Alguns terceirizados começaram a se mobilizar por mudanças, mas é um longo caminho cheio de obstáculos. No início do mês, vários moderadores de conteúdo do Facebook nos Estados Unidos ameaçaram uma paralisação – foi a primeira ação do tipo por parte desses trabalhadores – por meio de uma carta aberta à Accenture e a Mark Zuckerberg. Centenas de seus colegas não receberam o salário de janeiro e, se o dinheiro não fosse pago, eles deixariam seus postos de trabalho.

Poucos minutos após o envio do e-mail, muitos trabalhadores receberam US$ 1,5 mil, de acordo com a Foxglove, grupo sem fins lucrativos de defesa da tecnologia do Reino Unido que aconselhou dezenas de moderadores sobre possíveis ações legais contra o Facebook. Outros moderadores também reclamaram recentemente que a Accenture havia ordenado a volta ao trabalho presencial; a equipe assalariada do Facebook foi autorizada a trabalhar em casa em meio à onda de casos da variante ômicron.

A Accenture acabou revogando a ordem. Tudo isso se soma a um acordo de US$ 52 milhões que os moderadores fizeram com o Facebook em maio de 2020 sobre as condições de trabalho, depois que a natureza tóxica de seu trabalho – a revisão de imagens de violência e abuso – foi exposta em amplas reportagens da imprensa.

Mesmo assim, as condições de trabalho em geral não mudaram. Cada dia de trabalho é monitorado minuciosamente, segundo um moderador de conteúdo nos EUA que comentou apenas sob condição de anonimato. Além de concordar com as cotas de produção, a maioria assina rígidos acordos de confidencialidade que os impedem de discutir seu trabalho com familiares e amigos. “O trabalho é horrível”, acrescentou o moderador de conteúdo. “Mas as pessoas têm muito medo de perder seus empregos”.

O mesmo medo existe entre os terceirizados da plataforma Mechanical Turk da Amazon, um marketplace para microtarefas que pagam alguns centavos por tarefa. Qualquer um pode ser um “turker” ao se inscrever na plataforma e realizar tarefas de inteligência humana – HITs, na sigla em inglês – como identificar objetos em uma série de imagens ou responder a perguntas de pesquisas. Centenas de milhares de pessoas fazem esse trabalho em suas casas, recebendo um salário médio por hora de pouco mais de US$ 3, ou mais, se tiverem as ferramentas de software certas. Sherry Stanley, uma mãe de três filhos que vive na Virgínia Ocidental, é “turker” há sete anos e durante boa parte desse tempo, a plataforma foi sua única fonte de renda – ela trabalhava cerca de 15 horas por dia para ganhar entre US$ 60 e US$ 100. A Amazon pode usar dados de treinamento produzidos por “turkers” para ajudar a desenvolver seus próprios serviços de IA.[1]

Para Stanley e outros, o problema com a Amazon MTurk não era tanto o baixo salário, mas a instabilidade – especificamente, as “rejeições em massa” aleatórias de seu trabalho por “solicitantes” anônimos, o que poderia levar à inexistência de pagamento por horas de trabalhos. Líderes de alguns dos maiores fóruns on-line para trabalhadores da MTurk no ano passado passaram meses discutindo cautelosamente o que fazer. Com a contribuição de Stanley e outros, eles finalmente concordaram em criar uma petição. Esta foi publicada on-line no início deste mês e solicita que vários executivos da Amazon regulem melhor o trabalho e se comuniquem mais com os líderes do fórum.

Os “turkers” raramente se mobilizam contra a Amazon para não perturbar o equilíbrio que possuem com sua plataforma, então a petição é um raro e desconhecido passo. Nas últimas duas semanas, a petição acumulou 374 assinaturas; quando chegar em 500, a intenção é enviá-la para a Amazon.

Trabalhadores por trás da IA são importantes, mesmo que sejam invisíveis. Nossas histórias foram negligenciadas, e chegou a hora de nos sentirmos mais seguros enquanto fazemos nosso trabalho em uma plataforma desequilibrada que apenas protege os solicitantes [link] Assine e compartilhe. Uma vitória para nós é uma vitória para todos os trabalhadores.

Ainda assim, com o aumento do trabalho terceirizado em todo o mundo, a grande maioria dos trabalhadores digitais ficam sem a devida atenção de seus empregadores de Big Tech, horários respeitáveis e salários decentes.

As petições dos trabalhadores digitais do Facebook e da Amazon são impressionantes, mas indiscutivelmente pequenas demais, como um grão de areia na praia, para parecerem passos promissores em direção a melhores condições. Um caminho mais impactante (e mais estressante) pode ser os tribunais, como demonstrado pelos motoristas da Uber (UBER), que no ano passado conquistaram o direito ao salário mínimo e auxílio-doença após processar a empresa no Supremo Tribunal do Reino Unido.

Embora os terceirizados da Alphabet tenham sido autorizados a ingressar no sindicato de funcionários em tempo integral no ano passado, há poucas evidências de que a atividade sindical melhorou as condições da mesma forma que a ação judicial.

Mary L. Gray, a pesquisadora da Microsoft que escreveu “Ghost Work”, estima que o número de pessoas que fazem esse tipo de trabalho crescerá à medida que mais comunicações e trabalhos criativos estiverem on-line, e a IA continuará precisando de ajuda constante dos humanos. Ela afirma que sua própria pesquisa mostrou que um melhor tratamento para terceirizados, incluindo melhores salários e estabilidade, leva a um trabalho de melhor qualidade, o que é do interesse de todos.

“Sabemos que essas condições de trabalho têm um efeito profundo no tipo de informação que consumimos”, diz ela. “Você não pode extrair valor do trabalho cognitivo se alguém está passando fome”.

[1] A Amazon diz em seu acordo de participação para o MTurk que “o conteúdo da Tarefa que você realiza e o produto de trabalho que você recebe por meio do site pode ser retido e usado para melhorar o site e outros produtos e serviços relacionados a machine learning oferecidos por nós ou nossas afiliadas”.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Parmy Olson é colunista da Bloomberg Opinion e cobre a área de tecnologia. Já escreveu para o Wall Street Journal e a Forbes e é autora de “We Are Anonymous”.

--Esta notícia foi traduzida por Bianca Carlos, localization specialist da Bloomberg Línea.

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