Eu realmente sinto muito pelos hamsters de Hong Kong

Dia em que território abateu 2 mil animais para cumprir política covid zero da China marca novo ponto baixo

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Bloomberg Opinion — O momento em que a jornada distópica de Hong Kong ficou mais vívida que qualquer outro foi um marco surreal. Talvez nos lembraremos de onde estávamos quando decidiram abater os hamsters.

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A base científica para a decisão do governo de sacrificar 2 mil dos pequenos mamíferos é no mínimo questionável. A decisão ocorreu após a descoberta de que 11 animais estavam infectados com a variante delta do coronavírus. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos afirmam que o risco de animais espalharem o vírus para humanos é baixo. Um acadêmico de saúde de Hong Kong considerou o abate injustificado e excessivo. Os trabalhadores do setor de saúde e bem-estar animal estão indignados.

A atitude foi rapidamente ridicularizada com a disseminação de memes e emojis de hamsters nas redes sociais. Podemos perdoar os pais por acreditar que estavam vivendo um pesadelo digno de Kafka. Jardins de infância e escolas primárias já estão fechados e playgrounds foram isolados, ao passo que o governo segue sua política de covid zero e tenta conter um surto da variante ômicron. Alguns pais agora enfrentam o desafio de explicar aos filhos o motivo pelo qual um animal de estimação deve ser enviado ao Departamento de Agricultura, Pesca e Conservação para um “tratamento humano”, como descreveu um funcionário.

O episódio é uma singularidade perfeita para Hong Kong, misturando o absurdo, a arbitrariedade e a rigidez das políticas que caracterizam a saúde pública e os programas políticos do governo desde o início da pandemia. Em ambos os casos, a abordagem foi impulsionada por um imperativo primordial: o alinhamento cada vez mais próximo com a China continental. Após dois anos de isolamento forçado, é uma política que questiona cada vez mais o futuro de longo prazo de Hong Kong como centro de negócios e centro financeiro internacional.

As autoridades de Hong Kong realmente teriam dado um passo tão rápido e draconiano não fosse a adesão da estratégia chinesa de controle de covid? Isso se tem como base as políticas rígidas destinadas a eliminar clusters de infecção onde quer que ocorram, que são aplicadas sem comprometimento e com pouca consideração pelo efeito sobre quem ficar do lado errado dessas medidas. ”Não temos escolha, temos que tomar uma decisão firme”, disse Thomas Sit, diretor assistente do departamento de agricultura, na terça-feira (18). Não tiveram escolha, é sério?

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Autoridades examinaram hamsters na loja de animais Little Boss depois que um trabalhador testou positivo e constatou que os animais estavam infectados com a variante delta. Mas não há evidências de que os animais possam disseminar o coronavírus para humanos, e os especialistas continuam em dúvida. Hong Kong já realizou abates em massa para conter surtos de doenças anteriormente. Na ocasião, os animais eram galinhas e porcos, não roedores de estimação que são os favoritos das crianças. Parece que não houve consciência de como esse anúncio seria visto pelo público e pelo mundo – algo que talvez seja perigoso para um governo irresponsável ansioso para mostrar que é capaz de realizar ações duras e decisivas.

Em comunicado governamental à imprensa, um porta-voz defendeu o abate de hamsters, mencionando a Holanda e a Dinamarca, que, em 2020, abateram milhões de martas – um animal que foi confirmado como capaz de espalhar covid para humanos. Essa não é uma comparação que Hong Kong deveria fazer. O abate de 17 milhões de martas na Dinamarca provocou protestos e provou ser ilegal. A primeira-ministra Mette Frederiksen foi questionada por uma comissão parlamentar no mês passado e pode enfrentar o impeachment se constatado que ela não disse a verdade.

Os funcionários do governo de Hong Kong, nomeados pelo governo de Pequim, não enfrentam essa responsabilidade. Nem os legisladores, nomeados por um comitê ou eleitos por uma base eleitoral muito menor depois que a China reformulou o sistema para excluir a oposição pró-democracia. No início deste mês, dezenas de funcionários e legisladores participaram de uma festa de aniversário de 200 pessoas, desafiando as advertências do próprio governo. Nenhum deles renunciou ou foi demitido, embora tenham sido enviados para um campo de quarentena. Mesmo isso teve um lado positivo: o governo reduziu o período obrigatório de quarentena de 21 para 14 dias, permitindo que o secretário de Assuntos Internos Caspar Tsui e o diretor de Imigração Au Ka-wang encerrassem o isolamento mais cedo.

Acontece que existe escolha, e é possível ser flexível em questões de política de saúde pública. Talvez os hamsters não tiveram muita sorte.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e seus proprietários.

Matthew Brooker é colunista e editor da Bloomberg Opinion. Anteriormente, foi colunista, editor e chefe do escritório da Bloomberg News. Antes de ingressar na Bloomberg, ele trabalhou para o South China Morning Post. Também é analista financeiro com certificação CFA.

--Esta notícia foi traduzida por Bianca Carlos, localization specialist da Bloomberg Línea.

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