Num dos julgamentos mais importantes do Brasil nos últimos anos, a advogada Tatiana Borsa, que defende um dos réus no processo do incêndio da boate Kiss – que provocou a morte de 242 pessoas, em janeiro de 2013 –, causou espanto ao sacar uma suposta carta psicografada (alegadamente ditada por uma vítima do fogo, por meios sobrenaturais).
O conteúdo da suposta carta, lida por uma gravação (voz de locutor de rádio e sob um fundo musical dramático), ia em conformidade com a tese da defesa de que o incêndio não se tratava de crime, mas de uma tragédia.
A atitude da defensora de um dos réus no julgamento do incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas, provocou uma onda de questionamentos
Diferente dos filmes americanos sobre tribunal do júri, onde muitas vezes a defesa surge com uma prova que irá inocentar o réu na última hora, no sistema judicial brasileiro isso não é possível.
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O artigo 479 do Código Penal proíbe a leitura de documento ou a exibição de objeto, durante o julgamento, se ele não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias úteis, dando-se ciência à outra parte.
O que aconteceu no caso do júri da Boate Kiss é que o carta atribuída ao espírito de uma das vítimas foi juntado nos autos, obedecendo o rito processual. O momento adequado para o juiz tê-la indeferido seria no momento da juntada de provas.
“O erro aí foi ter permitido juntar essa ‘carta psicografada’ nos autos do processo. Sem nenhum juízo de valor sobre quem acredita ou não, carta psicografada não tem valor de prova testemunhal por uma razão técnica. Advogados, Ministério Público e o juiz podem fazer perguntas a uma testemunha até que ela esclareça o que tem a dizer”, diz Gustavo Badaró, professor de Processo Penal na Faculdade de Direito de São Paulo.
“Mas como é que alguém vai fazer alguma pergunta para o espírito?”
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Segundo Badaró, na presidência do júri, o juiz deve intervir sempre no sentido de impedir ilegalidades, sem dar chances para alegações de cerceamento de defesa mais tarde.
A questão problemática aqui, segundo o professor da USP, é que o magistrado aceitou a suposta carta psicografada como prova antes do julgamento.
Existe limite para advogado ou promotor no júri?
O tribunal do júri é uma das instituições mais antigas do Ocidente. Se as origens dos julgamentos populares estão ainda na Grécia antiga, foi apenas com a Magna Carta (1215), que limitou os poderes do rei da Inglaterra e estabeleceu os direitos fundamentais, que a instituição apareceu como modelo para as constituições modernas, como a dos Estados Unidos (1787) e da França pós-revolucionária. No Brasil, a instituição do júri foi fortemente influenciada pelo direito francês.
Defensores do modelo de tribunal do júri entendem que é uma instituição democrática, que permite ao réu ser julgado pelos seus iguais. Quem se opõe ao modelo põem em dúvida a capacidade dos jurados de decidirem questões de “alta relevância técnica”, especialmente em julgamentos de grande repercussão social.
A leitura da “carta psicografada” trouxe de novo à tona um debate (potencialmente insolúvel) sobre até onde um advogado pode ir para garantir a ampla defesa de seu cliente. No catálogo de direitos fundamentais que é o artigo 5º da Constituição Federal, o texto estabelece que é assegurada, no tribunal do júri, a “plenitude da defesa”, sem nenhuma limitação de ordem legal. Em termos de interpretação, diz Badaró, “plenitude da defesa” é mais abrangente que “ampla defesa”.
Quem já foi a um júri na Barra Funda, na capital paulista, bairro onde fica o maior fórum do país, por exemplo, provavelmente já se deparou com cenas de gritos na sustentação de promotores e advogados, interrogatórios que beiram a humilhação de réus e testemunhas e, não raro, argumentos que se distanciam da lei e do bom senso num vale-tudo para convencer os jurados.
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Num julgamento de um caso de feminicídio no Paraná, um advogado agarrou uma colega pelo pescoço e a chacoalhou, simulando um enforcamento. A cena foi tão bizarra que a seção paranaense da OAB repudiou o comportamento por “propagar a violência que deveriam enfrentar e combater”. O júri acabou condenando o cliente do advogado a 31 anos de prisão por ter matado a mulher.
Em março deste ano, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu um limite à atuação dos advogados no júri ao considerar que a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional.
A tese vinha sendo utilizada pelas defesas dos acusados de feminicídio ou agressões contra mulheres, tendo por objetivo imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões.
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