Bloomberg Opinion — Há uma terrível inevitabilidade no fato de que a cepa mais recente do vírus da Covid-19 - conhecida como B.1.1.529, e agora apelidada de variante Nu [1] - tenha sido identificada pela primeira vez na África do Sul.
Até agora, os impactos mais devastadores do SARS-CoV-2 ocorreram em países desenvolvidos. Os Estados Unidos, o Reino Unido e os países da União Europeia foram responsáveis por cerca de um terço das mortes, em comparação com sua parcela de cerca de 10% da população mundial. No entanto, foi no grupo dos BRICS, de países de renda média de rápido crescimento, que uma parcela desproporcional de novas variantes preocupantes foi isolada e analisada pela primeira vez. Da cepa original da China à linhagem Delta, adquirida na Índia, a variedade Gamma, isolada no Brasil e as cepas Beta e Nu mais recentes, da África do Sul, apenas a variante alfa, relacionada ao Reino Unido, emergiu fora desses países.
Em parte, isso é apenas um reflexo do fato de que duas em cada cinco pessoas no planeta vivem em um dos países do BRICS. Também não é coincidência que novas variantes tenham sido identificadas pela primeira vez em países com a infraestrutura científica sofisticada necessária para identificá-las. Os BRICS são alguns dos maiores participantes do mercado global de medicamentos genéricos, e países como Índia e África do Sul têm desempenhado um papel fundamental nos debates sobre isenções de propriedade intelectual para aumentar o acesso a medicamentos.
Nesse ponto, porém, o fator crucial pode ser o fato de que os países mais ricos estão agora, em sua maioria, tão fortemente vacinados que as oportunidades para o vírus produzir novas mutações são cada vez mais limitadas. As nações com as maiores populações de cidadãos suscetíveis e não vacinados são aquelas onde as chances são maiores de que o SARS-CoV-2 encontre uma nova maneira de romper as barreiras que colocamos em seu caminho.
“Fugir da imunidade é algo que os vírus fazem muito bem”, disse Ian Mackay, professor associado de virologia da Universidade de Queensland. “Se há muitas populações que ainda são suscetíveis, significa que continuamos correndo na roda do rato, como antes.”
É muito cedo para ter informações suficientes sobre o efeito da última variante nas pessoas. Um aspecto preocupante é o número notavelmente grande de mutações, particularmente em aspectos do genoma que afetam a capacidade do vírus de se transmitir ou de lutar contra as respostas imunológicas do corpo. Isso aumenta a perspectiva de que poderia, como ocorre com o Delta, se espalhar mais rapidamente por meio de populações não imunes, ou mesmo romper a proteção daqueles que já foram infectados ou vacinados.
Ao mesmo tempo, a grande diversidade de mutações significa que será difícil saber com certeza se essas mudanças vão se amplificar ou se cancelar mutuamente, até que possamos observar o progresso da última variante em humanos, disse Mackay.
Não precisamos da resposta a essas perguntas, no entanto, para saber o erro que o mundo rico já está cometendo ao tratar a Covid-19 como um patógeno que já foi derrotado por suas próprias altas taxas de cobertura vacinal. Países como China, Japão, França, Itália, Coreia do Sul e Canadá podem até se gabar de que três quartos de suas populações estão totalmente imunizados. Contudo, 110 dos 200 países e territórios dos quais a Bloomberg possui dados estão com cobertura inferior a 50% (os EUA, com 59%, tem um dos piores registros do mundo desenvolvido). Desse número, 64 nem chegam a 25%, incluindo a própria África do Sul. A Índia, com 31%, e a Rússia com 37%, não estão muito melhor. Das 37 nações com menos de 10% totalmente protegidas, 32 estão na África Subsaariana.
Essa enorme lacuna está sendo impulsionada pelo ritmo arrastado no qual as empresas farmacêuticas dos países ricos, onde os medicamentos foram desenvolvidos, vêm compartilhando sua propriedade intelectual com produtores de genéricos nas economias emergentes. Enquanto a decisão dos EUA, em maio, de dispensar as regras de propriedade intelectual para os medicamentos da Covid-19 foi um grande passo para resolver esse problema, a oposição europeia e a falta de disposição dos governos não conseguiram produzir a mudança necessária para aumentar os suprimentos.
“A atual lacuna de igualdade da vacina entre os países mais ricos e os de poucos recursos demonstra um desprezo pelas vidas dos mais pobres e vulneráveis do mundo”, escreveram os chefes da Organização Mundial da Saúde e da Organização Internacional para Migração e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, em um carta aberta aos líderes do G-20, no mês passado. “A desigualdade da vacina está ceifando vidas todos os dias e continua a colocar todos em risco.”
Com o aumento da imunidade natural e a que é gerada pela vacina, a evolução viral terá que se tornar cada vez mais engenhosa para escapar de nossas defesas. Até agora, quase metade da população mundial recebeu uma dose da vacina contra Covid. Isso significa que ainda há mais de 3,4 bilhões de pessoas que podem servir de laboratório para o vírus desenvolver novas mutações. Enquanto não reduzirmos esse número, não estaremos numa posição tão favorável como gostaríamos de pensar.
[1]A Organização Mundial da Saúde nomeia as variantes com base nas letras do alfabeto grego, já foram usadas as letras de Alfa a Nu.
David Fickling é colunista da Bloomberg e escreve sobre commodities e empresas tanto industriais como as que trabalham direto com o consumidor. Já foi reporter da Bloomberg News, do Dow Jones, do Wall Street Journal, do Financial Times e do The Guardian.
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