Bloomberg Opinion — Não é sempre que você ouve alguém se gabar de comprar café com “dinheiro”, a menos que você esteja transitando nos círculos do Bitcoin.
Ser capaz de usar a criptomoeda em redes como Starbucks e Pizza Hut está sendo apontado como uma revolução nos pagamentos, como se pode ver nas várias selfies e vídeos de El Salvador. O presidente Nayib Bukele estabeleceu o Bitcoin como moeda com curso legal no país (junto com o dólar americano) em setembro, como uma tentativa de atrair riqueza digital.
Comprar café com criptomoedas também está chamando atenção nos Estados Unidos, onde elas têm sido recebidas como um impulsionador da adoção de ativos digitais pelo aplicativo de wallet, Bakkt, de propriedade majoritária da Intercontinental Exchange. A capacidade do aplicativo de converter saldos de Bitcoin em recompensas da Starbucks (com taxas médias de 2%) em dólares americanos é, na visão da empresa, um “efeito flywheel” autossustentável, que justifica sua elevada valuation e ambição no universo da economia digital.
Esse hype sobre transações eletrônicas bastante cotidianas - alguém aí está se gabando por pagar no Starbucks com ApplePay e PayPal? - é um sinal de como os evangelistas desejam promover o Bitcoin como mais do que um ativo especulativo semelhante ao ouro, que atualmente é negociado a US$ 65.000.
Mas não é representativo de um boom de criptomoeda autossustentável. Pagar por uma cerveja gelada com Bitcoin é mais um meme do que uma roda reinventada.
Apesar da ambição inicial do Bitcoin de ser um mecanismo de pagamento ponto a ponto desenvolvido para evitar taxas de intermediários, a criptomoeda ainda é amplamente negociada e acumulada como uma mercadoria especulativa. A restrição artificial do fornecimento de Bitcoin (limitado a 21 milhões) tornou o token valioso como um ativo muito antes de poder se estabelecer como um método de pagamento.
As altas (e quedas) de preços que tornaram o Bitcoin uma montanha-russa para os comerciantes são precisamente o que impede sua adoção mais ampla como meio de pagamento. Quando o preço do Bitcoin dobra em seis meses, a quantia em dólares gasta no café com leite de ontem pode de repente se assemelhar a derramar o café com leite em um Lamborghini. (Lembre-se do pedido infame de pizza de 2010 por 10.000 Bitcoin?) Quando cai quase pela metade em poucas semanas, há uma corrida atrás do dinheiro, não de cappuccinos.
Alguns fãs reconhecem isso. No início deste ano, o cripto bilionário Mike Novogratz comparou a compra de uma Diet Coke com Bitcoin a “pagar por ela com ouro (...) Isso não vai acontecer”. Problemas de escalabilidade de longo prazo, como processamento de transações, taxas e consumo de energia - nem todos resolvidos pela Lightning Network em El Salvador - até fazem o Bitcoin parecer “risível” como uma alternativa séria de pagamento, nas palavras do investidor de private equity, Chris Flowers.
E o efeito flywheel da Bakkt? A criação de aplicativos para comprar café com moeda digital pode ajudar a pavimentar o caminho para a adoção generalizada da criptomoeda? O recente prejuízo trimestral da empresa sugere que há uma longa jornada pela frente, pelo menos nos EUA.
Os analistas da Jefferies estimam o gasto médio de marketing da empresa por usuário em US$ 12, enquanto a receita média estimada por usuário é de cerca de US$ 10. O “FOMO” (ou, o “medo de ficar de fora”, em tradução livre) visto em mercados de criptomoeda não parece estar incomodando a Bakkt, que afirma ter 1,7 milhão de contas em transações no acumulado anual, abaixo de suas projeções iniciais de 9 milhões de usuários ativos até o final de 2021. O CEO da Bakkt, Gavin Michael, disse por e-mail que a empresa está “apenas começando” e aponta para novas parcerias, como com a gigante de pagamentos Mastercard.
Peter Garnry, estrategista do Saxo Bank, afrima que o último trimestre de 2021 será crucial para a Bakkt mostrar um aumento significativo no número de usuários do aplicativo para compras reais como café.
Talvez não seja tão surpreendente que ganhar força em um mercado maduro como o dos EUA seja um porcesso lento. Os defensores dizem que pagar pela Starbucks em El Salvador é o verdadeiro tiro de partida. Ainda assim, o Bitcoin enfrenta pressão competitiva em todos os lugares, à medida que novos tokens de pagamento e stablecoins se multiplicam. Falar sobre café é uma distração muito útil para uma classe de ativos que também é conhecida por golpes, especulação e ransomware, com reguladores ansiosos para agir.
Dada a estrutura da Bakkt, centralizada e bem relacionada com as normas impostas pelos órgãos reguladores, sua visão mais ampla como uma carteira digital para tudo, desde milhas aéreas a itens de videogame, não apenas Bitcoin, pode valer a pena. Talvez haja um futuro para monetizar pequenos potes de ativos ilíquidos que não podem ser gastos facilmente. “Eu comprei café com milhas aéreas” é muito menos emocionante do que Bitcoin - mas agora, é tão realista quanto.
Lionel Laurent é colunista da Bloomberg Opinion e escreve sobre a França e a União Europeia. Já trabalhou para a Reuters e a Forbes.
Os editoriais são escritos pela diretoria editorial da Bloomberg Opinion
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