Bloomberg Opinion — As criptomoedas ainda não conseguiram extinguir o dinheiro emitido pelo governo ou provocar a revolução mais ampla que seus entusiastas mais ardentes imaginam. Mas e se a tecnologia subjacente a elas pudesse ser aproveitada para transformar moedas fiduciárias tradicionais, por exemplo, tornando-as muito mais acessíveis e baratas para que mais pessoas ao redor do mundo possam usá-las?
Essa meta pode ser atingida, mas com a ajuda da instituição que a criptomoeda foi criada para driblar: os governos.
O dinheiro comum deixa muito a desejar. A maioria das pessoas o guarda em grandes bancos, que às vezes usam subterfúgios e até mesmo fraudes descaradas para cobrar impostos de seus clientes - além de terem se mostrado extremamente frágeis em momentos de crise. Transferir dinheiro pode levar dias, especialmente se for preciso passar pela antiquada e hackeável rede de bancos que operam as transferências internacionais. Para quem não têm conta bancária - incluindo milhões de americanos, desproporcionalmente negros e latinos - a situação ainda é pior. Cobram-se taxas onerosas para o desconto de cheques, uso de caixas eletrônicos, emissão de cartões e transferências de dinheiro.
Bitcoin, a criptomoeda original, foi criada para contornar tudo isso. Qualquer pessoa com uma conexão de Internet pode abrir uma conta com pseudônimo, que é controlada por meio de uma chave privada. Os usuários podem enviar tokens digitais de qualquer lugar, a qualquer momento, graças a uma rede voluntária de computadores que registra as transações em um livro-razão público, conhecido como blockchain. Criptografia de alta potência e descentralização protegidas contra abusos e mau funcionamento. A tecnologia trouxe esperança não apenas quanto a um tipo de financiamento mais equitativo, mas também quanto à ideia de maior estabilidade: a falência de um ou mais grandes bancos globais causaria muito menos danos se as transações pudessem ser feitas sem eles.
O Bitcoin gerou todo um movimento, mas até agora falhou como dinheiro. As criptomoedas puras são voláteis demais para serem úteis, exceto para especulação, comércio ilícito e financiamento ocasional de ativistas em regimes opressores. O poder de computação necessário para o blockchain do Bitcoin o torna lento e caro para transações menores, sem mencionar que é prejudicial ao meio ambiente. As pessoas têm medo de perder as chaves de sua criptomoeda (estima-se que cerca de um quinto de todos os Bitcoins tenham sido perdidos dessa forma), então as confiam a aplicativos tipo wallet e outras plataformas, que são frequentemente hackeados. A maioria dos “adeptos” das criptomoedas se envolve por meio dos mesmos tipos de intermediários - exchanges, PayPal, caixas eletrônicos especializados, sociedades fiduciárias opacas - que a tecnologia pretendia substituir. Muitas dessas empresas são menos seguras e mais caras do que os bancos tradicionais. Seu rápido crescimento representa uma ameaça para a estabilidade financeira.
Dito isso, nem tudo está perdido. Apesar de tudo, a inovação em criptomoedas ainda pode oferecer um sistema de pagamento melhor.
Considere stablecoins. Eles lidam com a volatilidade vinculando seu valor a moedas fiduciárias - reconhecendo implicitamente o maior defeito das criptomoedas puras. Elas podem ser executadas em blockchains, que funcionam com mais eficiência do que o Bitcoin e têm uma pegada de carbono menor. No momento, elas são usadas principalmente por especuladores de criptomoedas para deixar fundos “estacionados” enquanto decidem sobre a próxima aposta ou para ganhar juros em pools de empréstimos não regulamentados. Mas, como uma forma singular de dinheiro eletrônico, elas têm o potencial de tornar as transferências fáceis, instantâneas e baratas. A Diem Association, iniciativa do Facebook, por exemplo, quer usá-las para permitir pagamentos em aplicativos de dispositivos móveis como o Facebook Messenger e o WhatsApp. Em última análise, a infraestrutura que elas usam pode apontar os rumos que as moedas digitais emitidas pelo governo podem tomar.
Outra iniciativa, conhecida como Lightning, visa resolver os problemas de volume de processamento e energia do Bitcoin, estabelecendo canais paralelos através dos quais vários pagamentos podem ser feitos, com apenas o saldo final registrado no blockchain. O sistema permitiu que um aplicativo, o Strike, usasse o Bitcoin para remessas entre os EUA e El Salvador. O dinheiro dos usuários pode entrar como dólar em um país e sair como dólar no outro, quase que imediatamente, em criptomoeda volátil.
Inovações como essas são promissoras - mas também representam riscos que os reguladores precisam enfrentar.
• Eles podem desencadear corridas. Stablecoins resgatáveis por moedas fiduciárias a taxas fixas e saldos em moeda fiduciária em aplicativos como o Strike precisam ter garantias seguras. Geralmente não é o que acontece. Uma recente pesquisa da Bloomberg Businessweek sobre o Tether, a stablecoin mais popular com cerca de US$ 70 bilhões em aberto, encontrou uma empresa “infestada de bandeiras vermelhas”. A falta de clareza - ou falta de fundos - pode um dia assustar os usuários, precipitando um crash enquanto todos correm para a porta de saída ao mesmo tempo.
Os reguladores devem insistir em que se criem garantias, na forma de ativos de alta qualidade e, de preferência, em moeda fiduciária. Nos Estados Unidos, isso pode ser alcançado por meio da exigência de que aplicativos de pagamento e emissores de stablecoin invistam apenas em depósitos bancários que, por sua vez, são mantidos no Federal Reserve, ou criando uma licença bancária rigidamente definida, permitindo-lhes abrir contas de reserva diretamente com o Fed.
• Elas podem arruinar os bancos tradicionais. Se as pessoas puderem guardar seu dinheiro com segurança em stablecoins e aplicativos de pagamento, elas poderão parar de depositá-lo em bancos, privando-os dos recursos para fazer empréstimos. A contração do crédito resultante pode prejudicar a economia.
Uma análise recente do Bank of England sugere que essas preocupações são superdimensionadas. As pessoas provavelmente demorarão, dizem os autores, a adotar novas formas de dinheiro digital, dando tempo para que o sistema se adapte. Ainda assim, os reguladores devem errar por excesso de cautela, proibindo stablecoins e aplicativos de pagamento de pagar juros, ou reduzindo os juros que recebem sobre seus depósitos no Fed. Essas restrições podem ser afrouxadas num segundo momento, quando as autoridades puderem avaliar a real ameaça aos bancos e ao crédito.
• Elas podem ter um colapso ou serem hackeadas. Uma coisa é os aplicativos do Facebook ficarem offline por um dia; mas as consequências de um evento como este no caso de a empresa administrar um sistema global de pagamentos seriam enormes. Os protocolos mais novos ainda não foram comprovados - como demonstrou a recente interrupção do blockchain Solana. O Lighting tem vulnerabilidades bem conhecidas.
Os reguladores devem exigir capital próprio suficiente para absorver perdas inesperadas e definir padrões de segurança e governança - por exemplo, testando a resiliência e identificando quem estaria encarregado de lidar com emergências. Se uma empresa não puder demonstrar que agirá com responsabilidade, a execução de um sistema de pagamento não deve ser permitida. Além disso, os sistemas devem ser interoperáveis, de modo que um dólar em um sistema possa ser facilmente convertido em um dólar em outro.
• Elas podem encorajar o crime. As plataformas de criptomoedas geralmente identificam os usuários apenas com um endereço alfanumérico. Isso as tornou o ambiente ideal para desenvolvedores de ransomware, fraudadores de impostos e outros criminosos - e levantou preocupações de que elas poderiam servir de instrumento para burlar as sanções internacionais e as leis contra lavagem de dinheiro.
Plataformas e aplicativos podem e devem exigir identificação quando for necessária para fazer cumprir a lei. Se os reguladores exigissem isso - por exemplo, quando os saldos ou transações ultrapassassem certos limites - os sistemas de pagamento habilitados para criptomoedas poderiam permanecer amplamente acessíveis e ainda muito mais transparentes do que o sistema bancário atual. Na maioria dos casos, as transações já estão visíveis nos livros contábeis públicos, o que já ajudou tanto as autoridades policiais quanto a comunidade de criptomoedas a rastrear e recuperar ganhos ilícitos.
Para muitos, o frenesi especulativo em torno das criptomoedas não vai acabar bem. Funcionários como a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, têm defendido medidas urgentes para lidar com os riscos crescentes. Mas eles também estão certos de que o caminho não é proibir totalmente as criptomoedas, como a China tem procurado fazer. O surto de inovação já está impulsionando a concorrência, tanto pública quanto privada, a atualizar um sistema financeiro que certamente pode passar por algumas melhorias. O resultado pode beneficiar pessoas em todos os lugares - desde que os reguladores cumpram seu papel de atuar na proteção contra os perigos envolvidos.
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