Futebol feminino passou a ser visto como um ativo, diz técnica da Seleção

Eleita uma das 500 personalidades mais influentes da América Latina pela Bloomberg Línea, Pia Sundhage conta como o futebol vai muito além da hora da partida

Treinadora prepara a equipe para os amistosos contra a Seleção da Austrália nos dias 23 e 26 de outubro
22 de Outubro, 2021 | 04:45 PM

Bloomberg Línea — Admiradora da cultura brasileira, a técnica da Seleção Feminina Pia Sundhage deixa claro que treinar a equipe é o maior desafio de sua carreira. Com passagens pelos comandos das seleções dos Estados Unidos e de seu país natal, a Suécia, a ex-jogadora de 61 anos conta, em entrevista à Bloomberg Línea, que foi necessário ter coragem e estar aberta à novidade quando recebeu o convite para se mudar para o Brasil.

Em meio à preparação para os amistosos contra a Austrália, com partidas neste sábado (23) e na próxima terça (26), a Seleção Brasileira Feminina já olha a Copa América de 2022. Pia diz que usa seus erros e aprendizados com os últimos jogos - principalmente a derrota para o Canadá nas Olimpíadas de Tóquio - para olhar o que pode fazer melhor nos próximos. “O primeiro passo é não subestimar as coisas”, disse.

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A treinadora carrega grandes feitos em sua carreira, como o prêmio Bola de Ouro da Fifa em 2012, na categoria treinador de equipe feminina. Em 24 jogos à frente da Seleção Brasileira, entre 65 gols marcados e 13 sofridos, ela acumula 15 vitórias, sete empates e apenas duas derrotas.

Como jogadora, Pia ficou a maior parte de sua carreira como atacante e se aposentou como artilheira de sua seleção, mas também teve passagens como meia e defensora. Ela lembra que, quando criança, sonhava em ser o Pelé ou o jogador alemão Franz Beckenbauer, pela falta de representatividade feminina no esporte. Hoje, se orgulha de ser um exemplo para as futuras gerações de pequenas jogadoras.

Pia pontua que esse cenário tem mudado para o futebol feminino, principalmente depois da Copa de 2019, quando as redes sociais passaram a se engajar mais e torcer pelas jogadoras. “As redes estão espalhando a palavra de que assistir às mulheres é legal, é divertido.”

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Eleita uma das 500 personalidades mais influentes da América Latina pela Bloomberg Línea, a primeira técnica estrangeira da Seleção Feminina brasileira completou dois anos de casa no fim de julho e hoje ocupa a sétima colocação no ranking de seleções femininas da Fifa, após finalizar 2019 como nona.

Confira abaixo os principais destaques da entrevista:

Bloomberg Línea: O que te motivou a vir para o Brasil treinar a Seleção?

Pia Sundhage: Quando eu era criança, e em toda a minha vida e minha carreira, dizer “Brasil” e “futebol” era quase a mesma coisa. Quando eu recebi a ligação perguntando se eu queria ser treinadora aqui, eu só disse sim, e depois de um tempo tentei descobrir o que isso significava. No fim das contas, se não der certo, se você não tem sucesso, é só voltar para casa, e eu tenho uma casa na Suécia. Mas o futebol me levou a lugares muito legais e eu gosto muito daqui. Esse é o maior desafio da minha carreira.

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BL: Por que acha que é o maior desafio?

PS: Por muitas razões. Primeiro, a cultura. Eu já estive nos Estados Unidos, na China, mas a cultura é desafiadora. E as expectativas e organizações são diferentes. Eu venho de um país muito organizado como a Suécia. Tento fazer com que tenhamos sucesso, e eu sei que para me planejar para o sucesso, eu preciso ter organização.

BL: Muitos dizem que o seu maior desafio é preparar a Seleção para a saída da Marta. Você concorda?

Número 10 da Seleção foi eleita seis vezes pela FIFA a melhor jogadora do mundo

PS: Eu não posso dizer que teremos uma nova Marta. Se houver uma, ficaria mais do que feliz em treiná-la. O que eu tento fazer agora é moldar uma nova geração. A Marta é muito especial, já foi a melhor jogadora, premiada pela Fifa muitas vezes. Desde que a vi pela primeira vez, jogando na Suécia, eu sabia que ela era especial. Eu lembro quando eu estava treinando a Seleção dos EUA e joguei contra ela, ela dominava o jogo.

A competitividade dela é especial, e eu gosto muito disso, mas hoje em dia ela não domina mais o jogo como fazia há dez anos. Então, o trabalho é mais como usar a Marta de forma respeitosa e como aprender com ela. São coisas muito empolgantes pra mim, de estar perto de uma jogadora tão boa.

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BL: Quais outras diferenças você vê no futebol feminino de dez anos atrás?

PS: Antigamente, tínhamos jogadoras que iam no um a um, que pensavam fora da caixa. Eram boas nos truques e driblavam bastante. Hoje em dia, isso não funciona mais. É preciso lembrar das personalidades de ataque, até porque o tipo de ataque mudou. A parte defensiva melhorou muito nos jogos femininos. Primeiro porque temos goleiras melhores, e também, o time está mais organizado.

Ninguém mais acha que é só driblar. Não vejo uma jogadora no Brasil que seja capaz de driblar um time inteiro, como víamos antigamente. O futebol de hoje é ataque e defesa, e tudo o que há no meio disso. O que eu tento fazer aqui com minha equipe é ter um pouco dessa personalidade de ataque e saber quando atacar, e ainda definir melhor a defesa. Se você olhar para os melhores times no mundo, eles estão fazendo um trabalho muito bom nisso.

BL: E além da preparação técnica, como é a preparação psicológica das atletas?

PS: Futebol é sobre técnica e sobre a preparação física - o que eu acho que podemos melhorar aqui no país -, mas também é sobre a parte mental. Muitos dos clubes e seleções estão equilibradas nos jogos, então o que diferencia, o que separa um time do outro, muitas vezes é a parte psicológica, de como você acredita em algo e em como cria aquilo. É um pouco sobre ter um time e saber que nunca se está sozinho. Se você tiver um jogo ruim, sabe que o time vai te ajudar, mesmo que você entregue a bola ou cometa um erro. Eu busco ter conversas e dar feedbacks sobre isso, e funciona bem.

Se alguém jogou 90 minutos e foi fraco, claro que ela fez algo que foi muito bom. E eu tento enfatizar isso e dizer “veja e analise o que funcionou bem para você, e faça isso com mais frequência”. Principalmente para jogadoras que só jogam aqui, claro que vai haver erros. E está tudo bem cometer erros, se você tentar mudar na próxima vez. Eu tento perguntar o que ela vai fazer de diferente, ter uma conversa. Costumo dar feedbacks individuais, ou a cada duas ou três jogadoras.

BL: Como foram essas conversas após a eliminação das Olimpíadas?

PS: Foi muito difícil. Eu sou só um ser humano que tenta ser uma boa treinadora, mas preciso dizer que aquilo custou muito. Terminou comigo pedindo desculpas, porque acho que eu poderia ter feito um trabalho melhor para as quartas de final.

O jogo contra o Canadá, quando eu olho pra trás, eu sei que poderíamos ter feito diferente. Eu sei que poderia ter feito uma preparação diferente em certas partes do jogo, e nas partes emocional e mental também. Não subestimar as coisas, não tomar como certo. Eu não fiz um bom trabalho e foi uma lição pra mim.

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BL: O que você vai fazer diferente para as eliminatórias para a Copa?

PS: Estamos só começando. Tivemos dois jogos contra a Argentina. São só promessas, por enquanto, mas o primeiro passo é não subestimar as coisas. Pensamos que somos um time técnico, que temos velocidade, mas as coisas não vêm fácil e temos que trabalhar. Todas nós precisamos lembrar umas às outras de respeitar o jogo.

BL: As Olimpíadas, e também a final do Brasileirão, entre Palmeiras e Corinthians, mostraram que a audiência do futebol feminino cresceu muito. Você sente que a Seleção ganha a atenção que merece, ou ainda falta?

PS: Se você voltar para a Copa de 2019, foi um turning point em muitos aspectos, não só no jogo, mas também no público. Eu joguei na primeira Copa, em 1991 na China, onde ganhamos a medalha de bronze, mas isso nunca chegou ao resto do mundo. Nunca teve uma revolução para as mulheres, até 2019.

Corinthians conquistou o segundo título consecutivo, isolado como maior campeão do torneio

E a razão para isso não é a mídia, são as redes sociais. As redes estão espalhando a palavra de que assistir às mulheres é legal, é divertido. Dá para contar várias histórias, e a mídia só faz isso por duas ou três semanas. Quando o Corinthians ganhou aqui, a informação foi difundida pelas redes sociais. Estou na expectativa de quando a mídia vai chegar a isso também.

BL: Acha que é um turning point para o futebol feminino como negócio também?

PS: Eu só estive no lado do futebol desde sempre. Eu já ouvi sobre essa combinação, mas só sei de uma coisa: quando você joga futebol, ou um esporte, você busca um jeito de resolver problemas. Você não senta e pensa que não consegue fazer.

Os jogos femininos precisam de apoio. E se olhar, sempre foram os homens pagando para as mulheres jogarem, no geral. Mas são tempos novos. Se você é uma empresa inteligente, vê como os jogos femininos são e como atraem o público, também feminino. Por que não apoiar, já que isso com certeza vai dar retorno?

E eu posso dizer que aqui, na CBF, temos novos patrocinadores, que com certeza querem algum retorno. O que eles recebem é ter mulheres fortes, inteligentes, que trabalham juntas. Eventualmente, teremos mais companhias que querem patrocinar o esporte feminino, é só o inicio. Porque no fim das contas, é muito importante para aquela menininha, lá no início, ter algum lugar para ir, ter um time, um treinador, e ver um modelo lá em cima. Se ela assiste um jogo, pensa que quer ser como aquela jogadora na TV. Diferente de mim, que quando tinha seis anos de idade queria ser Cruyff, Pelé, Franz Beckenbauer.

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BL: O engraçado é que nunca pensou em ser treinadora de futebol, certo?

"Ela é uma mulher, eu também sou uma mulher, então eu também posso fazer isso”

PS: É por isso que acho tão importante ver esses grandes jogos femininos. Eu lembro quando era criança e dizia que queria ser um menino, com 6, 7 anos. Minha mãe perguntava por que e eu dizia: “eu sou uma jogadora de futebol, e uma jogadora de futebol não pode ser uma menina”. Eu queria ser uma jogadora profissional, então eu tinha que ser um menino. Mas eu tive sorte. A vida mudou e as atitudes mudaram.

BL: Qual você acha que vai ser o seu legado como treinadora?

PS: É muito importante que eu tenha chance de ser uma treinadora. Eu lembro de olhar a primeira técnica que eu vi na Suécia, Gunilla Paijkull, que treinou a seleção em 1991 e ganhou a medalha de bronze, e pensar “se ela pode, eu também posso. Ela é uma mulher, eu também sou uma mulher, então eu também posso fazer isso”.

E não só isso. Na minha equipe, tenho mulheres e homens. Eu acho que pessoas que ocupam cargos como esses deveriam ser mulheres e homens, porque somos diferentes e temos visões diferentes. Treinadoras mulheres são muito importantes para melhorar os jogos. Ter ambos treinando, homens e mulheres, em jogos femininos e masculinos, seria perfeito.

BL: Qual mensagem você daria para aquela menininha que sonha em ser jogadora de futebol no Brasil de 2021?

PS: Eu posso dizer o que eu fiz. Eu estava muito interessada no futebol, eu queria ir aonde a bola estivesse indo, e eu fiz isso. Eu tento sempre pensar no que eu sou boa em fazer, e no que eu sou ruim. E tento procurar trabalhar com pessoas que me ajudem no que eu não sou boa.

Para mim, é muita coragem. Eu não tinha ideia se eu faria bem esse trabalho aqui. Mas eu sabia que se não desse certo vir para o Brasil, eu poderia simplesmente voltar para casa. Então só uma semana depois que eu entendi para o que eu tinha dito sim. Eu costumo dizer para minha equipe, que se eu fizer algo errado, eu sempre vou voltar à minha filosofia de dizer que esta tudo bem errar, e ter certeza de não cometer o mesmo erro de novo. Por favor, todas vocês, mulheres, digam sim.

Kariny Leal

Jornalista carioca, formada pela UFRJ, especializada em cobertura econômica e em tempo real, com passagens pela Bloomberg News e Forbes Brasil. Kariny cobre o mercado financeiro e a economia brasileira para a Bloomberg Línea.

Ana Siedschlag

Editora na Bloomberg Línea. Jornalista brasileira formada pela Faculdade Cásper Líbero e especializada em finanças e investimentos. Passou pelas redações da Forbes Brasil, Bloomberg Brasil e Investing.com.