Bloomberg Businessweek — Revisão de milhares de documentos públicos e dezenas de entrevistas com promotores, guardas florestais e membros do círculo interno de Bolsonaro mostram que o governo brasileiro está engajado em uma campanha ativa para abrir a Amazônia para a privatização e o desenvolvimento.
Em abril, os vereadores do estado de Rondônia se reuniram para uma votação apressada em um edifício que ficou praticamente vazio por meses. Poucos lugares do planeta foram mais atingidos pela Covid-19 do que Porto Velho, a capital de concreto que, como tudo na região, foi esculpida no meio da floresta amazônica. Mas naquela tarde chuvosa, enquanto a cidade estava fechada, os legisladores sentiram que não podiam esperar mais.
Eles precisavam aprovar um projeto de lei que reduzisse o tamanho de uma reserva estadual de floresta tropical, conhecida como Jaci-Paraná, e outro parque mais ao sul. Outrora uma vasta extensão de riachos sinuosos e gigantescos troncos de mogno e castanheiras, a Reserva Extrativista Jaci-Paraná foi amplamente transformada em pasto para gado. Estradas cortadas na lama vermelha brilhante cruzam a reserva, conectando centenas de fazendas onde pastam 120.000 cabeças de gado. As fazendas são ilegais. A nova lei mudaria isso. Os proprietários não teriam mais que esconder a origem de seu gado para vender a grandes produtores de carne. Mais importante, os grileiros ganhariam uma saída para conseguir títulos legais. Quase metade dos vereadores são fazendeiros ou foram eleitos com o dinheiro do agronegócio. Já faz tempo que queriam apagar o passado para suas bases rurais, e desta vez eles conseguiram apoio até do Palácio do Planalto.
Em alguns dias, o presidente Jair Bolsonaro apareceria em uma cúpula do clima patrocinada pelos Estados Unidos para defender os números do Brasil na Amazônia. Por dois anos, Donald Trump esteve ao lado de Bolsonaro, enquanto ele eliminava as proteções para a floresta tropical. O presidente Joe Biden certamente não faria o mesmo. O plano dos vereadores poderia desmoronar se Biden aumentasse a pressão. “Escutem bem,” Ezequiel Neiva, fazendeiro e vereador, disse a seus colegas: “Estamos tendo hoje uma das últimas oportunidades de votar um projeto de tamanha relevância.” O projeto foi aprovado por unanimidade. Coronel Marcos Rocha, governador de Rondônia e um dos aliados mais leais de Bolsonaro, sancionou-o em 20 de maio. (Está sendo contestado na Justiça.) Jaci-Paraná, antigamente grande o suficiente para engolir a Cidade do México, teve seu tamanho reduzido em 89%, sobrando apenas uma faixa de terreno ao longo de sua margem oeste. A outra reserva estadual mencionada no projeto de lei, Guajará-Mirim, perdeu 50.000 hectares, ou 124.000 acres.
Dois dias após a aprovação do projeto de lei em Rondônia, Bolsonaro não decepcionou os fazendeiros. Ele foi provocativo quando falou por vídeo com Biden e outros chefes de estado na Cúpula de Líderes sobre o Clima. Bolsonaro elogiou o trabalho do Brasil na proteção da Amazônia, enquanto apontava a dependência de combustíveis fósseis do mundo desenvolvido como a principal culpada pelas mudanças climáticas. Acima de tudo, ele lamentou um paradoxo amazônico. A floresta tropical é um dos maiores recursos naturais do globo, tanto em termos das commodities que detém, como em seu papel em produzir oxigênio e limpar o ar do mundo. Ainda assim, a maioria dos 24 milhões de pessoas que vivem dentro e ao redor dela são pobres.
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O valor da floresta em pé deve ser reconhecido, disse Bolsonaro. “Da mesmo forma, é preciso haver justa renumeração pelos serviços ambientais prestado por nossas biomas ao planeta.” A mensagem para o mundo ficou muito clara: ou vocês pagam o preço para que deixemos a Amazônia em paz ou o Brasil encontrará sua própria forma de extrair esse valor.
Há ampla evidência de que o governo já está fazendo isso. Uma revisão de milhares de documentos públicos e dezenas de entrevistas com promotores, guardas florestais e membros do círculo interno de Bolsonaro mostram que o governo brasileiro está engajado em uma campanha ativa para abrir a Amazônia para a privatização e o desenvolvimento. Em primeiro lugar, fazendo vista grossa para a invasão e a destruição das áreas protegidas e terras públicas, e, em segundo, perdoando sistematicamente os responsáveis e concedendo a eles o título legal das terras ilegalmente apropriadas.
O governo Bolsonaro não inventou essa prática. Ela está enraizada na constituição de 1988, e dois presidentes antes de Bolsonaro já tinham forçado mudanças que, essencialmente, anistiaram cerca de 25.000 pessoas que estavam ocupando propriedades públicas, como se pode ver numa revisão dos registros de terras brasileiras. Entretanto, Bolsonaro e sua equipe querem acelerar o processo como nunca, facilitando a entrada de grandes fazendeiros no esquema. “Desmatamento legal dento da lei temos que respeitar”, diz Luiz Antônio Nabhan Garcia, o czar da política agrária de Bolsonaro. “Isso aconteceu também nos Estados Unidos, como isso aconteceu na Austrália. As pessoas iam colonizar chegavam lá e era tudo terra da união.“ Nabhan Garcia tem 63 anos e é, ele próprio, fazendeiro. Ele e seu chefe atingiram a maioridade durante a década de 1970, quando o governo militar no Brasil via como imperativo para a segurança nacional transformar as extensões selvagens da Amazônia em cidades, fazendas e minas.
A ditadura, que durou até 1985, construiu bases militares, usinas de energia e uma rede de estradas entrecortando a selva densa. Esses projetos de infraestrutura ajudaram a alimentar o que se conhece como o “Milagre Brasileiro”, um período com crescimento econômico de 10% ao ano, que ainda se destaca na mente de muitos brasileiros como a era de ouro da nação. A verdade é que esta foi uma fase das mais sombrias para a própria floresta tropical. Milhões de pessoas migraram para o interior, vindas de cidades litorâneas, entalhando no meio da floresta fazendas e enormes centros industriais. Em 40 anos, a Amazônia perdeu uma área do tamanho da Califórnia para o desmatamento. Alguns cientistas sugerem que a Amazônia está à beira de um ponto de inflexão, que poderá transformá-la numa savana, em vez de uma floresta tropical. Isso terá o efeito de bombear os gases de efeito estufa para a atmosfera em vez de puxá-los para baixo. Se isso acontecer, os chamados rios voadores - faixas de ar úmido que trazem chuvas para o continente - vão secar. Até 10.000 espécies podem estar em risco de desaparecimento.
Desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2019, Bolsonaro, um ex-capitão do exército, reviveu a visão de mundo que predominava 50 anos atrás, de que o desenvolvimento da Amazônia e a prosperidade brasileira andam de mãos dadas. E ele colocou nas mãos de fazendeiros e pecuaristas, que compartilham de sua visão, as principais agências de gestão fundiária e do meio ambiente. Jaci-Paraná é o mais recente exemplo da concretização dessa visão, mas está longe de ser a única.
A União Bandeirantes, localizada a leste de Jaci-Paraná, é um pequeno distrito com uma comunidade agrícola, um par de estradas de terra e um algumas dezenas de estruturas cercadas por plantações de café e pastagens para gado. Há pouco mais de duas décadas, nem sequer existia. Não tinha estradas. Não tinha fazendeiros. Apenas a floresta tropical. Hoje, tornou-se um tipo de modelo para potenciais grileiros em Rondônia.
Edmo Ferreira Pinto, 49, orgulha-se de levar o crédito pela transformação. De calça jeans e uma camisa de botão, ele é intenso e enérgico, sentado num bar de vinho da moda, em Porto Velho. Nesta noite, contava como ele e seus amigos abriram caminho pela selva e dividiram pedaços de terra que não os pertencia. Ele se vê como um Robin Hood moderno que tirou do estado para dar aos pobres. “Eu ainda olho para trás e não acredito que conseguimos “, diz Ferreira Pinto.
Conhecido como Dim-Dim, Ferreira Pinto tinha apenas doze anos quando ele, seus pais, quatro irmãos e duas outras famílias apinhadas numa camionete ao estilo “pau-de-arara” viajaram os 2.500 quilômetros da Bahia até o estado de Rondônia. Foi em meados da década de 1980. O proprietário do caminhão ganhava a vida cobrando alguns reais por cabeça para transportar migrantes como eles para a Amazônia. Durante anos, anúncios do governo na TV, no rádio e nos jornais haviam prometido terra e prosperidade para qualquer um que se dispusesse a se aventurar nessa jornada. A Amazônia era “uma terra sem homens para homens sem terra “, promoviam os anúncios. Milhões de pessoas atenderam ao chamado para desbravar o “inferno verde” e a população de Rondônia inchou, de cerca de 115.000 pessoas em 1970 para mais de 1,1 milhão em 1990. Por trás desta explosão estava o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, órgão do governo que o regime militar criou para agilizar a revolução industrial do Brasil.
A viagem durou uma semana. Eles viajaram sentado em bancos de madeira, com apenas uma lona para oferecer sombra contra o sol escaldante. Como os outros milhões a caminho do Velho Oeste brasileiro, eles seguiram por uma rodovia construída como parte de um esforço apoiado pelo Banco Mundial para cravar estradas pela selva. Uma vez em Rondônia, a família foi morar com um tio, que tinha feito a mesma jornada uma década antes. Ele foi recompensado com terras, mas quando Ferreira Pinto chegou, tudo mudou.
Depois que a ditadura militar deu lugar a uma democracia, o Incra recebeu uma nova missão. Em vez de colonizar a Amazônia com fazendas industriais e fábricas, a agência foi instruída a reivindicar toda a terra que ainda não tinha sido desenvolvida, dividi-la em minúsculos lotes, e distribuí-los aos pobres do Brasil para agricultura de subsistência. Foi uma das maiores benesses de bem-estar social de toda a história do país. Mas a execução foi malfeita. Como não tinha mais o apoio do governo militar, o Incra não conseguiu fazer cumprir suas regras e estouraram conflitos pela posse da terra. As pessoas correram para reivindicar como seu qualquer terreno que parecesse estar vazio. Proprietários despojados de suas propriedades recorreram aos tribunais para tentar recuperar a terra, deixando-as amarradas por décadas. Os documentos eram facilmente falsificados ou alterados para fazer com que títulos fraudados parecessem legítimos. Um mercado ilegal de revenda com base em alegações duvidosas tomou conta do cenário. Alguns documentos falsificados já mudaram de mãos tantas vezes, que é impossível determinar os verdadeiros proprietários de alguns terrenos.
Uma década depois de se instalarem na Amazônia, os pais de Ferreira Pinto conseguiram chegar a um assentamento do Incra em uma fazenda enorme, que tinha sido concedida a um conglomerado durante a ditadura, e que depois foi confiscada porque a empresa não conseguiu desenvolver o terreno.
Ferreira Pinto olhou para as pessoas que estavam lá há anos. Eles ainda estavam morando em barracos cobertos de lona, sem água ou luz esperando que o Incra decidisse qual seria o destino delas. “Você vê isso e dói”, diz Ferreira Pinto. “Eu não acho que meu pai realmente deixou isso afetar ele, ou, pelo menos, nunca demonstrou. Mas eu, doeu.” Até então ele e seus amigos, que também vieram com seus pais em busca de terras, tinham passado a maior parte da vida esperando. Quando souberam de uma faixa de terreno livre a leste de Jaci-Paraná, traçaram um plano.
Em 3 de dezembro de 1999, dia que ainda é lembrado como um tipo de dia da independência, Ferreira Pinto e três ônibus cheios de pessoas foram até a fronteira da floresta tropical e montaram acampamento. Construíram pequenas cabanas e começaram a abrir estradas, derrubando todas as árvores que vissem pela frente. Levou um ano para adentrar a floresta até o ponto que é hoje o coração de União Bandeirantes. Pelo caminho, recrutaram topógrafos, advogados, construtores e administradores, todos ansiosos para preencher a brecha deixada pelo governo e abocanhar um pedaço de terra pública para si.
Ferreira Pinto foi preso duas vezes por conflitos e invasões, mas nunca foi condenado por um crime. No final, segundo suas estimativas, seu grupo assentou cerca de 1.800 famílias. A lei atual permite que qualquer pessoa que tenha desenvolvido terras até 2008 solicite anistia. O pessoal da União Bandeirantes apostou e deu certo.
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“Era mata pura. Eu derrubei tudo.”
Everaldo Pandolfi está sentado em um cavalo marrom no cruzamento de duas estradas de terra, observando seu filho cuidando do gado em um lote cercado. “Isso é tudo dele agora”, diz Pandolfi, ao apontar para um campo extenso na frente dele, onde tocos de árvores queimadas ainda se projetam da grama alta. Atrás dele está um terreno que ele transferiu para sua filha. À sua esquerda, um campo, de propriedade de seu outro filho. Juntos, eles somam mais de 200 hectares. “Era mata pura”, diz ele. “Eu derrubei tudo. "
Colono original da União Bandeirantes, Pandolfi, que tem 51 anos, pagou 250 reais (cerca de US$ 80 na época) a um topógrafo que trabalhava com o grupo de Dim-Dim para marcar sua futura fazenda. De lá, ele seguiu um manual bem conhecido: primeiro derrubou as árvores de madeira nobre, com centenas de anos de idade e mais de três metros de diâmetro. Elas trouxeram dinheiro rápido. O próximo passo foi atear fogo no terreno para limpar o mato que restou, antes de plantar um capim que serviria de alimento básico na dieta dos bovinos. Acabou construindo uma pequena casa, com dois viveiros de peixes e um curral para porcos nos fundos. Em mais alguns anos, os tocos de árvores queimados podem desaparecer para abrir caminho para a riqueza chegar: café ou soja. “Isso é o sonho”, um vizinho fazendeiro explica. No sul do estado, onde grandes fazendeiros dominam, a transição para a soja já está em andamento. Mas para isso, é preciso investimento: irrigação, maquinário e fertilizante. Os pequenos raramente chegam lá.
O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o regulador federal conhecido como Ibama, sabe tudo sobre o desmatamento, mas não faz muito para detê-lo. Um estudo realizado pelo site de notícias independente InfoAmazonia descobriu que entre 1980 e 2019, o Ibama emitiu multas que totalizam 75 bilhões de reais (US$ 14 bilhões), ajustados pela inflação, mas arrecadou apenas 3,3% desse valor. Pandolfi foi multado três vezes, e sua dívida já ultrapassa os 600.000 reais. Ele não tem planos de pagar. “Como?” ele pergunta, sentado descalço em sua varanda no fim da tarde, com a vista direta de uma área de floresta tropical reservada para os indígenas. Loiro e bronzeado, Pandolfi é modesto, mexe as pernas por debaixo da cadeira enquanto articula como vai contornar as multas para conseguir vender seu gado a grandes produtores de carne, cujas normas os proíbem de comprar de desmatadores. “Eu tirei tudo do meu nome “, diz ele. “Meu carro, minha casa, a terra.” Ele vende gado para um dos maiores frigoríficos da região, registrando as transações em nome de outro fazendeiro. É uma prática conhecida: a lavagem de gado. A carne originada dessas fazendas “ficha suja” foi encontrada nas cadeias de abastecimento de frigoríficos JBS e Marfrig Global Foods, e também em supermercados da rede Carrefour. Essas empresas dizem que examinam fornecedores diretos meticulosamente, e que tais casos representam uma porção muito pequena de suas compras de carne bovina.
Seria fácil pensar em Pandolfi como um vilão, um grileiro insensível, que destruiu um pedaço da preciosa floresta tropical sem dó nem piedade. Mas ele e seus vizinhos pintam um quadro em que política, pobreza e a demanda insaciável do mundo por commodities os empurraram para as escolhas que fizeram. A única maneira de obter crédito para financiamento é usar gado ou terra - mesmo sem título - como garantia. Os mercados globais não compram alimentos produzidos de forma sustentável em quantidade suficiente, como castanhas-do-pará ou açaí, para garantir a subsistência dessas pessoas. Ao mesmo tempo, o apetite por carne, grãos e madeira parece não ter fim. (Em 2020, o Brasil exportou US$ 35,2 bilhões em soja, farelo de soja e óleo de soja, e apenas US$ 128,3 milhões em castanhas). Enquanto isso, os políticos, desde as câmaras de vereadores até o presidente, incentivam a destruição. Cruzamento de bancos de dados de políticos e das multas aplicadas pelo Ibama mostram que quase 1.000 autoridades eleitas e funcionários nomeados por políticos têm embargos ou foram multados pelo Ibama.
É a pobreza que realmente impulsiona a corrida para “desenvolver” a floresta tropical, tanto da esquerda quanto da direita. Trinta por cento dos brasileiros vivem na pobreza, incluindo 13% que sobrevivem com menos de US$ 2 por dia, de acordo com o Banco Mundial. Na região norte, onde fica a floresta tropical, a pobreza é terrível: água potável, saneamento e eletricidade são artigos de luxo. Quase um terço da população é analfabeta funcional, incapaz de atender às necessidades diárias de leitura ou escrita. A pandemia da Covid-19 tornou-se apenas mais um item em uma longa lista de flagelos que inclui malária, dengue e Zika.
O boom das commodities em meados dos anos 2000 trouxe uma onda de prosperidade, que poucos brasileiros haviam experimentado. A crise que se instalou alguns anos depois, arrastou todo mundo. Hoje, os preços estão aumentando novamente, e com eles, esquemas para agarrar ainda mais terras. Só que agora os esquemas são mais ousados, mais organizados e muito mais violentos.
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Carlos Rangel da Silva adentra o Parque Nacional dos Pacaás Novos, na região central de Rondônia, deixando para trás capim na altura da cintura e o escaldante calor tropical de uma pastagem de gado. No Parque, se refresca à sombra do dossel da floresta tropical. De repente, ele pára, apontando seu facão para algo logo à frente. Os oito policiais armados e três guardas-florestais em sua comitiva congelam, esperando sua deixa. Ele aponta para um pedaço de grama levemente pisoteado e, mais a frente, uma trilha tênue na terra vermelha. “Uma motocicleta”, ele diz. “Pode ser alguém atrás de madeira ou explorando a área.” O guarda florestal que lidera o grupo resolve investigar mais de perto, seguido por dois policiais com seus rifles a postos.
Não era nada, mas há uma razão para Rangel estar em alerta máximo. Informantes haviam advertido que os grileiros estavam se reunindo para outro ataque a Pacaás Novos, um vasto parque nacional que abriga um impressionante desfiladeiro em forma de meia-lua, penhascos imponentes e cachoeiras profundas. A área de preservação se sobrepõe ao território de Uru-Eu-Wau-Wau, uma esquiva tribo indígena que nunca tinha feito contato com o mundo exterior até a década de 1980 e ainda mantém distância. No papel, ser um parque e uma reserva indígena garante à área duas camadas de proteção sob a legislação brasileira. “Mas isso não significa muito, especialmente hoje em dia “, diz Rangel.
Aos 72 anos, Rangel pode ser o mais antigo superintendente de parques nacionais no Brasil. Sua equipe é formada por nove bombeiros que também atuam como guardas florestais, patrulhando um parque maior que a cidade de São Paulo. Ele está no cargo há 20 anos e fantasia sobre se aposentar e escrever o próximo grande best-seller brasileiro. Mas os nomes que os chefões de Brasília apresentaram para substituí-lo, diz ele, são uma piada; eles querem trazer um burocrata. O trabalho é fisicamente exigente e muitas vezes obriga que Rangel e seus guardas florestais abram caminho pela selva, durmam em barracas, entre mosquitos e cobras venenosas. “Aqui, é preciso de alguém que lute”, ele diz.
Alguns anos atrás, Rangel descobriu um movimento bem organizado para reivindicar 60.000 hectares do parque. Foi liderado por um fazendeiro local, chamado Stable Queiroz, seus dois irmãos e uma senhora de 92 anos, chamada Victoria Pando de Souza, segundo uma denúncia apresentada em um tribunal federal. A família de Pando tinha obtido autorização para extrair borracha na área do parque em 1917, e o grupo afirmava que esses documentos lhes davam o direito de comprar e vender a terra. De acordo com a denúncia, eles tentaram dividir o parque em pequenos lotes para vender a qualquer um que quisesse comprar uma fazenda. Eles contrataram um advogado para criar uma associação e enviaram pessoas ao parque para construir um escritório de vendas. Centenas de compradores em potencial, em sua maioria trabalhadores rurais empobrecidos da região, se encantaram com a oferta. Queiroz sonhava em criar uma nova cidade agrícola, que receberia o nome de Rio Bonito e ele seria o prefeito de facto.
Servidores federais que estavam monitorando imagens de satélite em Brasília avisaram Rangel. Um lenhador habilidoso com uma motosserra pode derrubar mais de dois hectares de árvores nobres por dia, e Queiroz tinha toda uma equipe. A destruição estava se espalhando rapidamente. Por meses, de seu escritório em Campo Novo, uma cidade remota de cerca de 14.000 habitantes, onde guardas florestais e desmatadores vivem lado a lado, Rangel planejou um ataque.
Rangel reuniu algumas patrulhas, compostas por policiais mais jovens, que se apresentaram como voluntários para ganhar R$ 180 a mais por dia. Sempre que se aventuram a sair, são recebidos com ameaças e intimidação. “De agora pra frente nós vai tratar a ferro e fogo, entendeu?”, avisou Queiroz em uma mensagem de voz citada em documentos oficiais. “Ou vocês respeita nós de agora pra frente ou vocês vai sofrer as consequências de vocês, pode ter certeza disso daí.” Os policiais às vezes levam 12 horas para dirigir por 20 quilômetros ao longo de trilhas esburacadas e bloqueadas, onde os madeireiros ilegais operam, e uma vez lá, seria muito fácil para a gangue fugir para a selva densa.
Em uma das investidas, depois que Rangel e sua equipe prenderam um homem do grupo, Queiroz e cerca de outras 30 pessoas armaram uma emboscada na estrada de volta a Campo Novo. Eles carregavam coquetéis molotov e cercaram os veículos da polícia, ameaçando incendiá-los se não entregassem o homem detido a eles, segundo declarações juramentadas de Rangel. O impasse durou uma hora, até que ele e outro policial conseguiram acalmar o grupo. Mas tiveram que desistir do prisioneiro.
A denúncia contra Queiroz e seus associados foi ajuizada em outubro de 2019. Eles negaram qualquer irregularidade. Foram liberados da prisão, antes do julgamento, quando o sistema judicial estava esvaziado devido à pandemia. Foram ordenados a ficarem longe do parque, mas se houve uma coisa que Rangel aprendeu nos últimos 20 anos é que sempre há alguém esperando os guardas desviarem o olhar.
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Sob o sol forte, vários vigias com walkie-talkies protegem-se em dois barracos. Uma corda pendurada entre os barracos forma um portão improvisado para a Floresta Nacional do Jacundá, uma reserva de 220.000 hectares que se tornou um ponto crítico na guerra por terra. Depois da corda, uma trilha de terra mergulha em um vale estreito, onde um rio serpenteia sob uma ponte robusta construída com lajes feitas de toras gigantes. Crianças saltam da ponte para a água, enquanto duas mulheres pescam com uma rede de plástico verde. Outras lavam roupas alguns metros rio abaixo. A trilha sobe de volta para um acampamento chamado Terra Prometida, onde 200 famílias se instalaram dentro da área protegida na floresta.
Na entrada do acampamento, Fernanda Santana, 20 anos e grávida de 8 meses, reclina-se em uma cadeira de plástico branca dentro de uma cabana de dois cômodos com folhas de palmeira cobrindo o teto e as paredes. Ela tem cabelo castanho liso, que corre pelos ombros, unhas de acrílico e uma face serena. Na sala ao lado, há uma cadeira de dentista verde e equipamento parado. Lá fora, os homens constroem uma clínica para abrigar tudo.
O acampamento cresceu rapidamente. Nos cinco meses desde que os tomadores de terra chegaram, construíram uma igreja com um alto-falante e algumas centenas de cabanas idênticas e dispostas ordenadamente. Há uma torre de internet, um gerador, uma sala de aula, horta e chuveiros para as mulheres - os homens tomam banho no rio.
Em uma cantina, meia dúzia de cozinheiros prepara um almoço de arroz, feijão, carne bovina e legumes em panelas de aço amassadas, sobre fogueiras; o cronograma de trabalho é disposto em um tronco de árvore apoiado no telhado. A despensa está cheia de comida, comprada a granel. Questionada sobre como pagam por tudo isso, Santana diz que todos contribuem com tudo o que têm. Quando a refeição fica pronta, uma das mulheres sai e grita. Dezenas de moradores correm carregando tigelas e pratos de plástico.
Santana conhece muitas dessas pessoas desde criança. Ela é de uma pequena vila fora do parque, agora vazia. “Todo mundo veio para cá”, diz ela. Para os aldeões, Jacundá e sua vasta selva intocada pareciam uma afronta. Nas noites em que acamparam nos campos à beira do parque, debateram estratégias enquanto esperavam por famílias suficientes para se juntarem antes de fazer uma reivindicação.
Eles descobriram que, quanto mais pessoas no início, mais fácil seria resistir ao despejo. E estavam certos: alguns meses depois de se estabelecerem, a polícia ordenou que todos saíssem. Os residentes se reuniram na estrada estreita, cruzaram a ponte de madeira e encararam os oficiais frente a frente no posto de controle. Enquanto o grupo cantava: “Terra, terra, terra “, os policiais, em menor número, subiram de volta em seus veículos e foram embora.
A máquina de desmatamento do Brasil é complexa e é impossível saber exatamente quem está conduzindo seus movimentos. Uma grande parte certamente é impulsionada pelo cotidiano brasileiro que anseia por terra, mas isso por si só não pode explicar a escala absoluta de destruição ou a sofisticação recente dos ataques. Há algumas décadas, quando terras não destinadas eram abundantes, era fácil para um fazendeiro solitário colocar algumas estacas em um terreno e reivindicá-lo como seu. Mas esses terrenos não existem mais e o que sobrou em Rondônia são parques e territórios protegidos.
Denunciantes de crimes ambientais agora descrevem uma fraude que transforma brasileiros pobres em soldados de infantaria para gangues criminosas, extração de madeira por empresas e operações agrícolas industriais. “As pessoas que estão ali não têm os recursos financeiros para pagar por esse tipo de operação”, diz a ex-procuradora do estado, Aidee Maria Moser Torquato Luiz, que tentou por duas décadas impedir a grilagem de terras em Jaci-Paraná antes de finalmente desistir e se afastar da Amazônia. “Alguém está financiando isso.”
No cerne dos golpes está a gestão bizantina de terras que o Incra deixou de pé na caótica transição da ditadura para a democracia. “A gente tem uma discrepância entre a realidade factual e a realidade documental“, diz Tatiana de Noronha Versiani Ribeiro, a procuradora federal principal no caso Queiroz. “As pessoas de organizações criminosas descobriram como extrair documentação e explorar a confusão”. Primeiro, as gangues passam o pente fino em registros públicos, em busca de brechas, como a de Queiroz, de autorizações de extração de borracha de 100 anos atrás. Então, com a papelada falsa na mão, eles recrutam famílias desesperadas e os convencem de que a terra está em disputa. Depois, os transportam para reservas remotas, prometendo pagar por suprimentos e alimentos. As reivindicações são sempre contestadas no tribunal, mas permanecem no limbo legal durante anos. Enquanto não se chega a uma sentença, acampamentos se transformaram em aldeias, e fica cada vez mais complicado politicamente despejar centenas de famílias com crianças. Nesse meio tempo, os mentores estão invadindo a floresta e tirando a madeira. Quando terminam, eles passam para o próximo alvo. Muitas das famílias não conseguem sobreviver sozinhas e acabam abandonando a terra pela qual lutaram tanto, ou vendendo-a a preços baixíssimos para grandes agricultores que acumulam impérios pecuários e de soja.
No acampamento Terra Prometida, Santana diz que não há lideranças. “Essas pessoas só querem o que os outros têm.” Pessoas chegam diariamente para se juntar a eles, de todos os lados. Um dos guardas, um homem em seus 50 anos, com óculos de armação de metal, viajou com sua família da Venezuela. A cozinheira-chefe da cantina, uma mulher de Porto Velho chamada Elisangela, diz que esperou a vida toda por esta oportunidade. “Assim que ouvi sobre isso, deixei tudo para trás”, diz ela. Muitos souberam sobre o Terra Prometida em grupos do WhatsApp. Alguns fizeram a viagem depois de assistirem ao canal do acampamento no YouTube.
Eles planejam dividir a floresta em lotes de 20 hectares para agricultura familiar e dizem que têm todo o direito de estar lá. Como prova, Santana fica ansiosa em mostrar um marcador de aço amassado, perfurado na terra no quintal de uma das cabanas e carimbado pelo Incra: Gleba 4, Marco 7. Pode ter feito parte de um assentamento uma vez ou sido um marco quando o terreno foi levantado, mas provavelmente perdeu qualquer validade após a criação do parque. Pelo acampamento, há sinais de troncos cortados e manchas de terra queimada.
Imagens de satélite compiladas pela Global Forest Watch mostram pontos críticos de perda de cobertura de árvores ao redor. Santana reconhece que a selva está sendo destruída, mas diz que os colonos não são os responsáveis. “Tem uma grande serraria do lado “, diz ela. “Eles estão nos usando como desculpa.”
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Nabhan Garcia, czar da política fundiária de Bolsonaro no Ministério da Agricultura, fala rápido, tem um bigode espesso e uma queda por coletes de caça cáqui. Em um dia de junho, ele entra em um churrasco para fazendeiros da feira de Ji-Paraná em Rondônia, e a multidão reunida entoa gritos de felicidade. O estacionamento de terra está lotado de veículos quatro-por-quatro, como algumas Toyota Hilux e Ford Ranger. Ao lado, vê-se uma fileira de 10 espetos com carne assando lentamente sobre uma camada de carvão.
Entre a multidão estão políticos, executivos de mineração e fazendeiros que expandiram os negócios para energia solar e construção. Em uma das sociedades mais desiguais do mundo, estes são homens que construíram impérios - que, como Nabhan Garcia diz a eles, “segura esse pais nas costas, com seu suor”. Alguns se orgulham de terem propriedades de dezenas de milhares de hectares, que só fazem sentido se foram terras concedidas durante a ditadura, ou uma junção de fazendas menores falidas, ou ainda, são também terras sem título. Estes são os homens que Bolsonaro quer impulsionar.
De acordo com a legislação que o presidente introduziu em 2019 e que agora abre caminho no Congresso, fazendeiros em escala industrial podem, pela primeira vez, entrar na fila de reivindicação de terrenos legais e ganhar títulos públicos que foram originalmente destinados a assentamentos ou reservas. A proposta abre a porta para mais agricultores com propriedades entre cerca de 300 e 2.500 hectares. Combinados, são 16 milhões de hectares extras de terras amazônicas que logo poderão passar para as mãos de fazendeiros, incluindo propriedades que foram desmatadas mais recentemente, até 2012.
A mudança mais perigosa, porém, segundo Raoni Rajão, especialista em gestão de terras e política ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais, é que o governo quer que os funcionários do Incra não precisem mais ir a campo para inspecionar.
Eles vão contar apenas com as imagens por satélite. “Funciona bem para os grileiros não ter o Incra fazendo seu trabalho”, diz Rajão. “É um incentivo para continuar roubando terra.”
Como secretário especial de assuntos fundiários, Nabhan Garcia lidera a missão de angariar apoio para o projeto. Com nenhuma experiência política anterior, além de uma tentativa parlamentar fracassada em 2006, ele conseguiu acumular seguidores fanáticos entre seus companheiros fazendeiros, e ainda exerce um enorme poder de influência sobre o presidente.
Os dois se uniram durante a campanha eleitoral de 2018 por um amor compartilhado por armas e desdém por governos estrangeiros, que eles dizem estar ameaçados pela agricultura do Brasil.
“Por trás de tudo tem uma guerra econômica, tem uma guerra comercial”, diz Nabhan Garcia. “Nenhum país no mundo tem o potencial do Brasil. E isso assusta as pessoas”. Argumentos como este são o fio condutor no almoço em Ji-Paraná. Um fazendeiro fala de produtores de leite e queijo poderosos no Sul, que não querem a competição do Norte; outro diz que os produtores de soja americanos, insatisfeitos com suas contrapartes brasileiras e minados pela guerra comercial dos EUA com a China, estão caluniando o país.
Eles dizem que a situação na Amazônia não é retratada de forma justa no exterior, que as queimadas não são tão ruins quanto a mídia mostra, que a melhor forma de preservar a floresta é colocá-la na mão de proprietários privados com recursos. “Para quem tem título que fala ‘essa terra é minha’ ate pode acabar com incêndios ilegais “, diz Rocha, governador de Rondônia, em entrevista durante o churrasco.
Entre os patrocinadores do evento estão a Associação dos Proprietários Rurais de Rondônia, cujo presidente é Adelio Barofaldi, um magnata da carne que possui cerca de 40.000 hectares em várias fazendas. Alguns dias antes, em uma viagem a uma área de 9.000 hectares, que já foi terra pública federal, ele explicou como a adquiriu oito anos atrás de pequenos agricultores egressos. Agora ele está construindo uma fazenda de R$ 3 milhões, capaz de receber 15.000 cabeças de gado.
O ponto central do argumento da propriedade privada é que os proprietários terão o incentivo para fazer cumprir o código florestal do Brasil. A lei exige que os proprietários preservem 80% de suas terras, permitindo que o resto seja desmatado. No caso de Barofaldi, são mais de 30.000 hectares de selva que ele diz pagar para manter, empregando guardas para protegê-la de bandos de invasores que tentam derrubá-la. “Eu tenho que pagar para segurança e pagar imposto nesta terra para mim cuidar e eu nao ganho nenhum centavo para isso”, diz ele. Houve um aumento nos conflitos violentos nas propriedades privadas, e alguns dias antes do churrasco, a guarda nacional tinha ido a Rondônia para uma missão de 90 dias. Nabhan Garcia e seus apoiadores, criadores de gado fazem distinções quando falam sobre quem está fazendo a grilagem de terras. Há uma grande diferença, eles dizem, entre fazendeiros e pecuaristas que se mudam para terras públicas, e radicais de esquerda visando a propriedade privada, seja com título ou não. Nabhan Garcia foi citado em uma investigação em 2005 por supostas ligações com milícias que perseguiram invasores de fazendas em seu estado, São Paulo. Ele nega as acusações e nunca foi acusado oficialmente, mas defende com veemência o uso da força quando necessário. “A propriedade significa a vida daquela pessoa, a vida da familia.”, diz ele. “Se alguém invade sua propriedade, você tem o direito de reagir e acabar com a invasão, até mesmo acabar com o invasor”.
Até julho, cerca de 167 mil pedidos de títulos aguardam uma decisão do Incra. Até 12% deles envolvem fazendas que atualmente não são permitidas por lei, que compõem 60% da área reivindicada. Quase 30% das terras não mostravam sinais de uso antes de 2018, o que significa que a mudança da lei não se trata de dar segurança às famílias que estiveram nas propriedades há décadas, diz Rajão. É sobre anistiar invasões mais recentes e maiores. Assim que o Incra aprova o título, o proprietário basicamente o compra do governo federal. Em um município do estado do Pará, por exemplo, um hectare do Incra custa apenas R$ 46. Isso vale mais de 100 vezes no mercado aberto.
Barofaldi está solicitando títulos para 470 acres de terras a oeste de Porto Velho, como mostra um banco de dados do Incra. Cerca de 200 políticos na Amazônia também deram entrada na papelada de títulos para terras públicas, incluindo um deputado do estado de Rondônia que votou a favor do projeto de Jaci-Paraná. Pelo menos duas das reivindicações pendentes são para propriedades dentro de parques nacionais. Um membro do Congresso até listou uma propriedade não regulamentada em sua declaração eleitoral.
A análise das reivindicações de títulos está longe de ser completa, principalmente porque os dados sobre propriedades são muito difíceis de obter. O governo Bolsonaro usou a pandemia como escudo para restringir o acesso a informações públicas relacionadas à grilagem de terras, e Rondônia é um dos estados mais agressivos em travar os documentos.
O ponto é que a destruição está se acelerando. Bolsonaro colocou o ministério da Agricultura como o responsável pela regulação ambiental, cortou orçamento de prevenção e combate a queimadas, reverteu planos para proteger grandes porções de terra indígena e propôs o uso destas para mineração. Quase 10.500 km² de floresta amazônica foram destruídos nos primeiros meses de 2021, que está prestes a superar o recorde de 11 anos de 2020. Um estudo publicado em julho pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE mostra que onde as queimadas foram mais extensivas, essas áreas passaram a ser emissoras de carbono, contribuindo para a mudança climática em vez de ajudar a contê-la.
Muitas das apropriações de terras vão além até mesmo do que o governo Bolsonaro propôs anistiar. O raciocínio por trás é de que, embora títulos para um parque nacional, por exemplo, pode não estar no horizonte por enquanto, é apenas uma questão de tempo até que se tornem realidade. Sem consequências ou coerção pelos agentes da lei, por que não reivindicar essa terra agora? “O que é chocante é que se tratam de crimes confessados”, diz Rajão. “Pessoas dizem ‘estou tomando esta terra’, e eles são recompensados por isso, porque os legisladores continuam avançando a linha”.
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Itamar Lopes Manoel, de 54 anos, caminha meio quilômetro por uma estrada acidentada ao longo de um raro pedaço de floresta ainda em pé em Jaci-Paraná. Ele comprou o terreno de 100 hectares, em 2005, por R$ 1.200 de um homem que, para começo de conversa, nem sequer tinha o direito de possuí-lo. Foi um acordo selado com um aperto de mão, sem documentação. Ele diz que não tinha ideia de que era uma reserva estadual quando chegou. Mas também ninguém nunca disse para ele sair.
Ele abriu um pequeno pasto, onde seu vizinho pasta vacas por R$ 25 a cabeça por mês, mas seu foco está na parte florestal de sua terra. “É aqui que meus sonhos começam, bem aqui”, diz Manoel. Há espaço para um pomar de 3.000 árvores de cacau, o que daria uma boa vida, além de galinhas, porcos e vacas leiteiras para sua família. Ele não quer fazer isso da maneira típica, limpando e queimando tudo (principalmente porque gostaria de evitar ser multado pelo Ibama). Mas seus sonhos têm sido frustrados. “Eles não dão empréstimos para o cacau, apenas para o gado”, diz ele. “E gado não pode ser criado na selva. Cacau, sim, mas gado não”.
As autoridades que pressionam para desenvolver a Amazônia costumam dizer que estão tentando ajudar pessoas como Manoel. Mas eles têm dito isso por décadas, enquanto a desigualdade piorou. Sem programas governamentais para auxiliar as pessoas a trabalharem a terra de maneira sustentável, as chances são de que Manoel acabará vendendo tudo ou abandonará a ideia inicial do cacau.
Já na metade leste de Jaci-Paraná, fazendas estão sendo consolidadas em porte industrial. “A maioria dos pequenos agricultores acabam vendendo para os grandes “, diz Manoel. “Não podemos sobreviver. Eles podem.”
Este artigo foi produzido com o apoio do Pulitzer Rainforest Investigations Network.