O que o Marco das Ferrovias ensina sobre a política em Brasília

Como foi a construção do consenso juntou o projeto de um tucano, a relatoria de um petista e apoio do governo e oposição. Nova lei visa destravar investimento privado

Nova lei, que depende agora da Câmara, pode destravar projetos que somam R$ 80 bilhões nos próximos anos
06 de Outubro, 2021 | 02:01 PM

O Marco das Ferrovias foi aprovado ontem em votação simbólica, por unanimidade no plenário do Senado. A principal novidade do projeto, que ainda depende de passar pela Câmara, é o regime de autorização, que permite ao investidor privado tomar risco para construir suas próprias ferrovias. O marco deve destravar R$ 80 bilhões em investimentos nos próximos anos, segundo o Ministério da Infraestrutura.

O texto votado ontem é a 8ª versão do projeto de lei apresentado originalmente pelo senador licenciado José Serra (PSDB-SP), ainda durante governo Temer, em 2018 e teve uma trajetória rara no atual momento político em Brasília: foi apresentado por um tucano, relatado por um petista com aval da base do presidente Jair Bolsonaro e foi aprovado com votos da situação e da oposição.

“Eu tenho uma cisma com essa história das ferrovias porque o meu Estado tem três ferrovias abandonadas. Quando cheguei a Brasília em 2019, tomei conhecimento desse projeto do Serra e pedi ao Marcos Rogério, que é meu vizinho de gabinete, para relatá-lo”, contou à Bloomberg Línea o senador Jean Paul Prates (PT-RN).

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Marcos Rogério (DEM-RO) é integrante da base do presidente e presidia a Comissão de Infraestrutura do Senado no início da legislatura. Depois de uma consulta a integrantes do seu grupo político, o senador de Rondônia – mais conhecido recentemente por sua atuação na CPI da Pandemia – nomeou o vizinho petista para a relatoria.

Como se faz um consenso

Antes de chegar ao Senado, o advogado e economista Prates construiu carreira no mundo da consultoria. É mestre em Planejamento Energético pela Universidade da Pennsylvania (EUA) e em Economia do Petróleo e Motores pelo Instituto Francês do Petróleo.

Prates não é um especialista em ferrovias, mas em regulação de monopólios naturais – ferrovias são, do ponto de vista legal e teórico monopólios naturais, já que a competição do setor não se dá por um concorrente construindo outra linha bem ao lado. Nos anos 1990, trabalhou como consultor da equipe do ministro Sérgio Motta (o mais poderoso do governo FHC) na Lei do Petróleo. Depois, atuou no marco do pré-sal, durante o governo Lula.

Interesse começou com cisma com ferrovias abandonadas no RN

Em três anos de tramitação, houve 70 relatórios técnicos sobre a mudança da regulação do setor ferroviário no país, mais de 40 reuniões técnicas com o Ministério da Infraestrutura, representantes da área de logística e frete e representantes de setores econômicos interessados em fretes sobre trilhos – como agronegócio, mineração e transportes por contêineres.

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“A nossa estratégia foi passar ao largo do calor político para levar o ‘trenzinho’ pra frente”, relembrou o senador, divertindo-se com o aposto que ganhou em alguns setores empresariais, “o cara do PT aberto ao papo com os empresários”.

Uma das relações cultivadas por Prates durante a tramitação foi com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas. As equipes técnicas do Senado e do ministério discutiram o formato da regulação desde 2019.

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“O ministro está construindo uma carteira de projetos de infraestrutura”, pontuou o senador.

A abertura das ferrovias através das autorizações tornou-se uma das prioridades do Ministério da Infraestrutura porque permite captar investimento pesado em projetos de infraestrutura com segurança jurídica para investidores. Um indicador do prestígio de Tarcísio junto ao presidente foi a inclusão de um trecho sobre ferrovias no discurso que Bolsonaro fez na abertura da Assembleia Geral da ONU este ano.

Não por acaso, após a aprovação do projeto, ontem à noite, Prates subiu à tribuna e agradeceu o tucano Serra, o bolsonarista Marcos Rogério e o ministro Tarcísio, além de técnicos da Fundação Perseu Abramo (ligada ao PT) e do Senado.

Em Nova York, onde cumpre missão oficial, Tarcísio parabenizou o relator pela aprovação.

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No Brasil, o regime de autorização existiu durante o Império, mas foi substituído no século XX pelo modelo em que o governo construía e operava as ferrovias – até os anos 1990, quando houve a desestatização do setor e empresas passaram a operar trilhos públicos por meio de concessão.

O problema é que trechos menos rentáveis foram abandonados e, por falhas no modelo de concessão aprovados nos anos 1990, ficava tão caro devolver o trecho sem interesse econômico como investir nele. Em outras palavras, é mais fácil abandonar que devolver ou repassar a outro interessado.

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O interesse de agentes econômicos

Mas como o Marco das Ferrovias não foi contaminado pelas disputas intestinas entre o bolsonarismo e a oposição?

Além da disposição de antagonistas em colaborar, houve também o interesse de agentes econômicos, que precisam de frete mais barato para ganhar competitividade internacional. Hoje, 92% do minério de ferro do país já é transportado em trens. No setor de grãos – especialmente milho e soja – a proporção é de 46%.

Desde a privatização do setor nos anos 1990, o transporte de contêineres por trilhos cresceu 135 vezes e a tonelada transportada por vagões cresce organicamente 5% ao ano desde 2006.

“É um setor parrudo, que já existia antes com muita força e precisa de segurança jurídica para ampliar investimentos. É isso que dá a certeza que o novo Marco vai para a frente, independente de partido a ou partido b”, disse Prates.

O “reloginho” da MP

Em agosto deste ano, o governo publicou a Medida Provisória, tratando do marco das ferrovias, no fim de agosto, mas um acordo priorizou a tramitação do projeto de lei de autoria do senador Serra. A MP tem 120 dias – dois quais quase metade já passou – para expirar e a expectativa de Prates é que esse “reloginho” acelere a tramitação do projeto na Câmara.

“O acordo foi deixar a MP na gaveta e aprovar o projeto do Senado. Isso é importante porque se a MP voltar a tramitar nós teríamos em tese duas leis tratando da mesma coisa, o que é péssimo pro investidor. Enquanto a MP não expira, projetos como o da autorização em Mato Grosso se valem da base legal dela, mas é importante concluir a votação na Câmara e voltar pro Senado, e daí pro presidente, para que estes investimentos já projetados não sofram atrasos”, afirmou.

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Graciliano Rocha

Editor da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela UFMS. Foi correspondente internacional (2012-2015), cobriu Operação Lava Jato e foi um dos vencedores do Prêmio Petrobras de Jornalismo em 2018. É autor do livro "Irmã Dulce, a Santa dos Pobres" (Planeta), que figurou nas principais listas de best-sellers em 2019.