São Paulo — Em setembro, o Brasil exportou o maior volume de carne bovina da história. Foram pouco mais de 187 mil toneladas, volume que representa um crescimento de 31% em comparação ao mesmo período do ano passado e de 3,3% em relação a agosto, até então, recorde mensal de embarques. Apesar de ter comemorado o volume, as indústrias exportadoras nunca tiveram tanta incerteza sobre o desfecho que o produto terá quando chegar à China, mercado que representa cerca de 50% das exportações brasileiras. A expectativa é que os navios que deixaram os portos brasileiros no início de setembro comecem a atracar na China a partir desta semana e da próxima, mas ainda não se sabe se a carne poderá ser internalizada.
Desde 4 de setembro, os frigoríficos brasileiros estão proibidos de exportar carne para a China. Em decorrência da confirmação de dois casos atípicos de de Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB), mais conhecido como mal da “vaca louca”, o Ministério da Agricultura determinou um auto-embargo, com objetivo de cumprir o protocolo sanitário existente entre os dois países. Firmado em 2015, o documento determina que as exportações sejam “imediatamente” suspensas no caso de novas ocorrência de EEB, ainda que de forma temporária. “Caso haja uma nova ocorrência de EEB, o MAPA deverá suspender imediatamente e temporariamente as exportações de carne bovina à China, recolher as carnes bovinas congeladas que estão ou podem estar contaminadas, notificar a AQSIQ (atual General Administration of Customs of the People’s Republic of China - GACC) de imediato e fornecer informações detalhadas o mais rápido possível”, diz o protocolo, datado de 8 de junho de 2015, ao qual a Bloomberg Línea teve acesso.
Porém, não foi bem isso que ocorreu. O próprio Ministério da Economia reconhece que, mesmo com o embargo, os carregamentos que já tinham certificado sanitário continuaram sendo embarcados sem qualquer restrição, o que culminou no volume recorde de exportação. “O que a gente conseguiu apurar é que o protocolo do acordo, o embargo voluntário, o que havia sido certificado até o dia da notificação continuou o processo de exportação, então, não houve interrupção. O que já estava contratado, já estava em porto, também continuou o fluxo”, disse Saulo Castro, coordenador-geral de estatísticas do Ministério da Economia, durante a coletiva de imprensa sobre os resultados da balança comercial, na última sexta-feira (1).
Uma fonte da indústria, que falou à reportagem sob a condição de anonimato, explicou que havia no porto, já com o devido certificado sanitário, carne produzida para atender o mercado chinês desde junho. Contudo, os carregamentos vinham se acumulando por conta da falta de contêineres e também pelo reagendamento das datas de embarque dos navios. Cargas que deveriam ter sido embarcadas em junho foram prorrogadas para julho, as de julho para agosto e assim por diante.
Com carne produzida para a China se acumulando nos portos e começando a ser armazenada nos próprios frigoríficos, o nível de incerteza se acentuou com o ofício enviado às indústrias no dia 3 de setembro. O Ofício Circular nº 67/2021/DIPOA/SDA/MAPA, assinado pela diretora do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa), Ana Lúcia de Paula Viana determinou “a suspensão cautelar e temporária da certificação sanitária de Carne Bovina para a República Popular da China, a partir de 04 de setembro de 2021″. O documento fala em suspensão da certificação e não da exportação, como determina o próprio protocolo sanitário entre Brasil e China.
A mesma fonte da indústria disse que o sentimento do setor é que a atual situação resulta de um protocolo sanitário mal escrito, que tem gerado incertezas para os negócios por permitir diferentes interpretações em relação ao que está ocorrendo no momento. Em sua opinião, o documento já deveria, há tempos, ter sido atualizado, fato que nunca ocorreu.
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Em 2019, também após a confirmação de um caso atípico de “vaca louca”, o documento divulgado pelo ministério trazia um teor um pouco diferente. O Ofício Circular nº 48/2019/DIPOA/SDA/MAPA, também assinado pela diretora Ana Lúcia de Paula Viana, informava que estava “suspensa temporariamente a produção e a certificação sanitária para a República Popular da China, de carne bovina a partir de 31 de maio de 2019, data da ciência do resultado. Carregamentos expedidos até 30 de maio de 2019 serão internalizados na China. Produtos produzidos e expedidos a partir do dia 31 de maio de 2019, deverão retornar à estabelecimentos sob SIF, ou ser redirecionado”.
Diferentemente do que ocorreu no mês passado, o resultado dois anos atrás foi bem diferente. Em junho de 2019, com um embargo que durou apenas 13 dias, as exportações brasileiras de carne bovina recuaram 8% em comparação a maio. No caso dos embarques para a China em junho de 2019, foram quase 30% menores do que os registrados no mês anterior. Com as restrições suspensas ainda na primeira quinzena de junho, as exportações brasileiras voltaram a crescer e, em julho subiram 16% sobre junho. Já as vendas para a China cresceram 37% naquele mês.
Na prática, as exportações de carne bovina para a China em setembro atenderam ao ofício circular 67 do ministério, já que os certificados dos carregamentos eram anteriores à notificação do governo federal. Porém, desrespeitaram o protocolo, já que o documento determina a suspensão imediata das exportações com a confirmação de casos de BSE e não menciona o que deve ser feito com as cargas que já estavam prontas e certificadas, aguardando apenas para ser embarcadas.
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Diante do impasse, não está descartada a possibilidade que ações diplomáticas sejam tomadas. Isso porque, a carne exportada corre o risco de não ser liberada para entrar no mercado interno da China. Com isso, existe a chance de a carga ficar parada no porto aguardando por uma definição. Entre as possibilidade de definição a serem tomadas está a devolução da carne ao Brasil, a destinação a outros mercados e uma liberação, mediante a renegociação dos preços previamente acertados.
Vale lembrar que muitos interesses estão em jogo. A China vive nesta semana um feriado prolongado nacional, que começou na segunda-feira e se encerra na próxima quinta. Nesse período, o consumo de carne tende a subir e será necessário recompor os estoques do país. Além disso, os importadores chineses já adiantaram cerca de 40% do valor da carne importada, ou seja, os frigoríficos brasileiros já receberam antecipadamente boa parte do produto vendido.
Procurado desde a última sexta-feira pela Bloomberg Línea, o Ministério da Agricultura não respondeu aos questionamentos. O órgão do governo federal não se posicionou para esclarecer sobre a diferença de conteúdo dos ofícios de 2019 e 2021, apesar de os casos de EEB terem sido os mesmos e não ter havido qualquer alteração no protocolo. Também não informou se o embargo foi desrespeitado, uma vez que os embarques das cargas com certificado sanitário não sofreram interrupções.
A reportagem também questionou se alguma delegação havia sido enviada à China para discutir as condições para retomada das exportações de carne bovina, conforme previsto no protocolo. Considerando as limitações de viagens por conta da pandemia, foi questiono se houve alguma tentativa de contato formal entre o governo brasileiro e chinês, mesmo que virtual, para tratar do retorno das vendas. Novamente, não houve um posicionamento.
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